Algum tempo havia passado sem que visitasse o pequeno lugar para onde transferira algumas das suas memórias e, assim, compusera o tal recanto como que de uma emergência se tratasse.
Era véspera do dia dezanove, quer dizer: do dia do pai e do 2.º mês do falecimento de sua mãe.
No pequeno terreiro, rodeado de recantos ajardinados, há restolho espalhado por todos os lados. Atravessou-o em passos largos até um dos lados do retângulo da eira, onde fica a porta de entrada, e poisou os sacos das compras. Porque, afinal, era já hora de fazer o almoço. Depois, dirigiu o olhar para onde havia jardim e caminhou em direção ao muro sobranceiro ao tanque. Aí, imobilizou-se. Seu olhar ficou toldado. As lágrimas teimaram, e quase todo o dia por lá ficaram. As japoneiras, afinal, estavam muito coloridas: brancas, vemelhas, rosas... E ela que pensara que este ano não floririam, as japoneiras. A sua mãe. As japoneiras de casa de seus pais. Seu pai e sua mãe. Agora juntos para sempre. Para sempre.
Debruçou-se sobre elas e, minuciosamente, observou-as. As camélias brancas, tão lindas, bem formadas, pequeninas. Quase que lhes pediu desculpa por não acreditar nelas. As cor de rosa sobrecarregavam a árvore, parecendo-lhe que pediam ajuda para as aliviar. As vermelhas, de tamanho médio, compostas de múltiplas pétalas, também estavam harmoniosamente formadas e distribuídas. Acariciou-as ao de leve. Cortou botões e flores. Limpou-lhe as folhas e esgaravatou a terra junto à raiz.
Que pena! Não há registos fotográficos. Mas tudo se gravou em automático. Com sons e cheiros. Lágrimas. Saudades.
E foi deste modo, o espírito dividido entre o passado e o presente, a esperança e a inquietude, confuso, que vagueou o maior tempo.
Promete não haver descontrolo e libertar-se destes domínios mentais ou conflitos interiores que a ocupam em demasia. E também deseja que todos os descendentes de seus pais tardam a sua partida para o encontro final.
É curioso como é difícil ser natural. Como a gente está sempre pronta a vestir a casaca das ideias, sem a humildade de se mostrar em camisa, na intimidade simples e humana da estupidez ou mesmo da indiferença. Fiz agora um grande esforço para dizer coisas brilhantes da guerra futura, da harmonia dos povos, da próxima crise. E, afinal de contas, era em camisa que eu devia continuar quando a visita chegou. No fundo, não disse nada de novo, não fiquei mais do que sou, não mudei o curso da vida. Fui apenas ridículo. Se não aos olhos do interlocutor, que disse no fim que gostou muito de me ouvir, pelo menos aos meus, o que ainda é mais penoso e trágico.
Já há algum tempo que as fotos que publico são de temóvel. A máquina fotográfica encontra-se sem cartão. Vou explicar, ao de leve, qual a razão.
A última vez que usei, melhor dizendo, que queria usar a máquina fotográfica, já lá vai um mês, mas ela não funcionou. Mexi, remexi e outros também mexeram e remexeram e ninguém conseguiu colocar a máquina em ação. Simplesmente, piscava e por ali ficava como que em estado "morte lenta". E eu pensei: lá se foi, deve ter dado mais um tombinho.
Em casa, mais tarde, explicava o que acontecera e a minha filha mais nova responde: ah, fui eu que retirei o cartão.
Pronto. Entretanto, viaja em terras banhadas pelo rio Ganges, e eu por cá continuo... Em modo paciente (mas que remédio) à espera que ela regresse e se digne apresentar e colocar novamente o cartão na "minha" máquina fotográfica.
Para quem não sabe, é assim que acontece a certas mães, agora, por que razão?!... Não vou deambular, não vale a pena, e eu prometi uma explicação breve (sem que alguém me perguntasse) sobre as últimas fotos serem de telemóvel.
A porta de dobradiças em ferro, o baú em pele forrado a chita, as paredes grossas de granito, o soalho em tábuas de madeira, o sol passando pela vidraça. Estes são alguns dos elementos construtores do seu passado. Resolveu selecioná-los e compor um pedacinho do seu novo lar, em outro lugar, no campo, em memória dos seus pais, das brincadeiras de irmãos, das suas raízes.
Os materiais podem não ser os mesmos, claro que não, mas inspiram, provocam histórias, criam vontades, fazem acreditar que, apesar de tudo, enquanto houver memória, há sempre vida e motivos para continuar.