*Por ver um programa da Vista Alegre, há tempos, e porque a minha mãe faria anos.
O fascínio que, em criança, tinha ao observar um armário/louceiro recheado de peças variadas: travessas, pratos ladeiros e sopeiros, chávenas de café e almoçadeiras, bules, açucareiros, pratinhos de todos os tamanhos, os das chávenas de café, os das chávenas de chá, os de sobremesa e os desaparelhados...
Algumas peças com carimbo Vista Alegre, Sacavém, e não me recordo de mais... Em silêncio, abria as portas e remexia em tudo. Talvez fosse o querer brincar "às mães", e imaginar a história que toda a loiça contava... Talvez fosse isso o que mais me cativava.
Em dia de festa ou comemoração, a minha mãe utilizava-a, sempre alertando-nos para o cuidado que deveríamos ter. Mas, claro, muita loiça partiu.
Quando casei, com o dinheiro que recebi comprei um serviço de Vista Alegre, que estava em promoção.
Crescemos. Crescemos.
Os pais partem. Cada um partiu para constituir sua família.
As peças, agora avulsas, espalhadas, ficaram sem a magia e a história que as unia e nos reunia.
Outros histórias cativam. Os laços, a família. Reunirmo- nos num almoço, em restaurante. Só pode ser. As peças principais somos cada um de nós. A presença dos irmãos seus filhos e netos... E a lembrança dos que já partiram.
No dia de aniversário levei-lhe um ramo de flores e um presente. Tomámos café e conversámos um pouco. Ela não sabia que no dia seguinte seria surpreendida. Despedi-me e segui para o encontro de amigas. Outro aniversário.
No dia seguinte, a tal festa surpresa. Alguns irmãos, sobrinhos e sobrinhos netos. A mesa estava posta. As flores pequeninas, em vasos, e velas acesas enfeitavam o espaço... Uma grande surpresa! Bem merecida.
Mas fiquei atónita... Não aceitou as duas plantas que havia comprado em nome de todos.
- Não quero. Já me deste o ramo ontem. Gostei muito.
No fim de semana seguinte ao meu aniversário, tomei a decisão de fazer um convívio só com os meus irmãos e seus respectivos cônjuges, quem os tem, claro.
Apesar da presença de irmãos não ser na totalidade, éramos quase vinte.
Uma trabalheira, mas repleta de felicidade.
Já há muito que não os via deste modo, em festa. Relaxados, descontraídos, adolescentes, pareciam... Pudera, sem filhos ou netos para se distraírem ou preocuparem...
E, também, porque, os últimos "encontros", foram de despedida.
Todo o dia não se proporcionou para um momento que queria especial, "o silêncio", pelos que já partiram. O meu pai, a minha mãe e irmão. Os mais recentes, ambos, no mesmo ano, um a seguir ao outro.
O entardecer estava mágico, próprio do fim de um dia quente no campo. E foi ainda debaixo do grande guardassol que jantamos. Depois, anoiteceu e já outra mesa, dentro de casa, esperava-nos para as sobremesas...
E foi o momento certo. Interrompi a alegria e conversas cruzadas de alguns. Pedi meio minuto de silêncio. Não é necessário descrever o que aconteceu. Nem eu sei, porque, no final das palavras, transbordei de tanta emoção... Os parabéns foram cantados como um hino, como um escape, como uma oração...
Houve abraços apertados. Abraços que jamais esquecerei...
E a festa continuou.
Quando nos lembramos de tirar fotos, já o céu reluzia estrelado, mas lá bem longe :)
Não mais entrou pelos portões verdes do cemitério para visitar seus familiares.
Era o seu aniversário, ontem, 11 de Maio. Uma festa que só ela sabe organizar.
Subimos a Montanha- o Nariz do Mundo. Tudo a preceito. Tudo com requinte, apesar da distância dos grandes centros e da simplicidade do restaurante ...
Porque, da mala do carro, saíram cestas de malvas, castiçais e velas brancas, caixinhas e dedicatórias. Poemas...
E a toalha de xadrez, como pano de fundo, só podia contrastar e reforçar o bom gosto da aniversariante.
Sem querer descrever discursos e presentes, ementa e sorrisos... Um ramo era segurado em suas mãos. Ela observava-o, apontava aquela e aqueloutra- as pétalas-, nomeando o nome das flores. Encantada... São lindas! E sorriu para mim. Talvez, certificando-se se teria sido eu quem o comprara.
Regressámos. Sua mãe a seu lado. Debilitada, apesar da jovialidade que quer demonstrar. São 94 anos já feitos.
De repente, ela diz:- Não avisei o caseiro, este ramo era lindo para deixar aqui. Mas não consigo.
"Aqui", era o cemitério, por onde passávamos no momento.
Desde que o irmão morrera, havia 6 anos, nunca mais lá entrara. Deixou de os visitar. Pai, tia e esse seu irmão.
Prontamente nos oferecemos para levar o ramo de flores ao jazigo onde eles moram. Ela hesitou, a voz embaçou... Mas parou o carro.
Saímos, à pressa, eu e outra amiga, ambas, outrora, amigas de seu irmão. Passámos os portões entreabertos. Ansiosas, procurámos os nomes e os rostos desbotados pelo tempo, e achámos.
Lindos, sem dúvida alguma. Substituímos a água suja do vaso e colocamos o ramo de flores, aquele que a fez sorrir, que a encantou... E que agora se juntou às pessoas mais queridas, que a viram nascer e crescer...
Quando entrámos no carro, ela soluçava, silenciosamente, não queria que sua mãe se apercebesse. -Tão lindos que eles estão, lá nas fotos- dissemos.
Outra amiga, a Maria Luísa dizia-lhe:- Decide-te. Vai lá. Acaba com esse sofrimento...
E elas foram. Eu, a mãe e a outra amiga deixámo-nos ficar.
O carro aquecia, elas demoravam. Saí e fui espreitar... saíam abraçadas, soluçando. Corri de braços abertos. Entrelaçámo-nos e chorámos, alto. Ninguém nos ouvia.
Só o irmão, lá encima, piscava o olho, e sorria, ao seu jeito.
Pelo menos, que a força e a coragem permaneçam, sempre que os queira visitar...
Foi um dia em cheio. Já bastava festejar o meu aniversário. Este dia deixa-me sempre um pouco desconcertada. Por um lado, apetece-me comemorar com todos os familiares e amigos, por outro, sei que é quase impossível. E, nesta indecisão, acabo por seguir o caminho mais fácil, mais barato e mais egoista. Não quero ninguém. E, deste modo, festejo apenas com os que resolvem surpreender-me...
Este ano estive das 14h às 17.30h no tribunal. Eu e a minha filha mais nova comparecemos perante um grupo de batinas/togas negras e os dois assaltantes, para relatar o que se passou há quase 3 anos. Entramos separadamente. Anteriormente, não fizemos qualquer combinação sobre o que iríamos dizer. E cada uma expôs tudo o que ainda se recordava. Depois, fomos interrogadas pelo juiz e pelo advogado de defesa dos assaltantes. Parece que não deixamos dúvidas quanto ao sucedido. A sentença será lida dia 6 de Junho.
Agora, os assaltantes "renovaram" a nossa imagem. Várias pessoas acharam-nos de "fibra". Ter coragem de dar a cara perante dois assaltantes, prostitutos e um deles drogado.
Sei que houve queixas que foram retiradas. Sei que a prisão, caso haja, não adianta de nada. Sei que o mais jovem é toxicodependente, precisa é de quem o ajude. Sei que não devemos cruzar os braços. Sei que não penso no que poderá acontecer...
Hoje, Saramago faria 90 anos. Quem se habituou à sua escrita sente necessidade de saborear, de vez em quando, a sabedoria que ele soube transmitir nas suas palavras, ao longo do seu tempo. São tantos os pensamentos e citações que abundam nos Média, escolher um ou dois é complicado...
Nesta fase da vida encontro-me mais susceptível a este tema, daí a minha escolha...
"A vida, que parece uma linha recta, não o é. Construímos a nossa vida só nuns cinco por cento, o resto é feito pelos outros, porque vivemos com os outros e às vezes contra os outros. Mas essa pequena percentagem, esses cinco por cento, é o resultado da sinceridade consigo mesmo."